"Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe!" (Walter Benjamin)

“A cada experiência frustrada, recomeçam. Não encontraram a solução: a encontrarão. Jamais os assalta a idéia de que a solução não exista. Eis aí sua força” (José Carlos Mariátegui)


sexta-feira, 1 de julho de 2011

O Existencialismo é um Humanismo


Autor: Jean-Paul Sartre
Tradutora: Rita Correia Guedes

Fonte: L’Existentialisme est un Humanisme, Les Éditions Nagel, Paris, 1970.

Gostaria de defender, aqui, o existencialismo de uma série de críticas que lhe foram feitas.
Em primeiro lugar, acusaram-no de incitar as pessoas a permanecerem no imobilismo do desespero; todos os caminhos estando vedados seria necessário concluir que a ação é totalmente impossível neste mundo; tal consideração desembocaria, portanto, numa filosofia contemplativa – o que, aliás, nos reconduz a uma filosofia burguesa, visto que a contemplação é um luxo. São estas, fundamentalmente, as críticas dos comunistas.
Por outro lado, acusaram-nos de enfatizar a ignomínia humana, de sublinhar o sórdido, o equívoco, o viscoso, e de negligenciar certo número de belezas radiosas, o lado luminoso da natureza humana; por exemplo, segundo a senhorita Mercier, crítica católica, esquecemos o sorriso da criança. Uns e outros nos acusam de haver negado a solidariedade humana, de considerar que o homem vive isolado; segundo os comunistas, isso se deve, em grande parte, ao fato de nós partirmos da pura subjetividade, ou seja, do penso cartesiano, ou seja, ainda, do momento em que o homem se apreende em sua solidão – o que me tornaria incapaz de retornar, em seguida, à solidariedade com os homens que existem fora de mim e que eu não posso alcançar no cogito.
Na perspectiva cristã, somos acusados de negar a realidade e a seriedade dos empreendimentos humanos, já que, suprindo os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade, resta apenas a pura gratuidade; cada qual pode fazer o que quiser, sendo incapaz, a partir de seu ponto de vista, de condenar os pontos de vistas e os atos alheios. Tais são as várias acusações a que procuro hoje responder e a razão que me levou a intitular esta pequena exposição de: “O Existencialismo é um Humanismo”. Muitos poderão estranhar que falemos aqui de humanismo. Tentaremos explicitar em que sentido o entendemos. De qualquer modo, o que podemos desde já afirmar é que concebemos o existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana. A crítica básica que nos fazem é, como se sabe, de enfatizarmos o lado negativo da vida humana. Contaram-me, recentemente, o caso de uma senhora que, tendo deixado escapar, por nervosismo, uma palavra vulgar, se desculpou dizendo: “Acho que estou ficando existencialista”. A feiúra é, por conseguinte, assimilada ao existencialismo e é por isso que dizem sermos naturalistas. Se o somos, é estranho que assustemos e escandalizemos muito mais do que o naturalismo propriamente dito assusta ou escandaliza hoje em dia. Aqueles que digerem tranqüilamente um romance de Zola, como A Terra, ficam repugnados quando lêem um romance existencialista; outros, que se utilizam da sabedoria das nações – profundamente tristes –, acham-nos mais tristes ainda. Mas será que existe algo mais desesperançado do que o provérbio: “A caridade bem dirigida começa por si próprio”, ou “Ama quem te serve e serás desprezado; castiga quem te serve e serás amado”? São notórios os lugares-comuns que podem ser utilizados neste assunto e que significam sempre a mesma coisa: não se deve lutar contra os poderes estabelecidos, não se deve lutar contra a força, não se deve dar passos maiores do que as pernas, toda ação que não se insere numa tradição é romantismo, toda ação que não se apóia numa experiência comprovada está destinada ao fracasso; e a experiência mostra que os homens tendem sempre para o mais baixo e que são necessários freios sólidos para detê-los, caso contrário instala-se a anarquia. No entanto, as pessoas que ficam repetindo esses tristes provérbios são as mesmas que acham muito humano todo e qualquer ato mais ou menos repulsivo, as mesmas que se deleitam com canções realistas: são estas as pessoas que acusam o existencialismo de ser demasiado sombrio, a tal ponto que eu me pergunto se elas não o censuram, não tanto pelo seu pessimismo, mas, justamente pelo seu otimismo. Será que, no fundo, o que amedronta na doutrina que tentarei expor não é fato de que ela deixa uma possibilidade de escolha para o homem? Para sabê-lo, precisamos recolocar a questão no plano estritamente filosófico. O que é o existencialismo?
A maioria das pessoas que utilizam este termo ficaria bastante embaraçada se tivesse de justificá-lo: hoje em dia a palavra está na moda e qualquer um afirma sem hesitação que tal músico ou tal pintor é existencialista. Um cronista de Clartés assina o Existencialista. Na verdade, esta palavra assumiu atualmente uma amplitude tal e uma tal extensão que já não significa rigorosamente nada. Está parecendo que, na ausência de uma doutrina de vanguarda análoga ao surrealismo, as pessoas, ávidas de escândalo e de agitação, estão se voltando para esta filosofia, que, aliás, não pode ajudá-la em nada nesse campo; o existencialismo, na realidade, é a doutrina menos escandalosa e a mais austera; ela destina-se exclusivamente aos técnicos e aos filósofos. Todavia, pode ser facilmente definida. O que torna as coisas complicadas é a existência de dois tipos de existencialistas: por um lado, os cristãos – entre os quais colocarei Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica – e, por outro, os ateus – entre os quais há que situar Heidegger, assim como os existencialistas franceses e eu mesmo. O que eles têm em comum é simplesmente o fato de todos considerarem que a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário partir da subjetividade. O que significa isso exatamente?
Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um livro ou um corta-papel; esse objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou num conceito; tinha como referencias o conceito de corta-papel assim como determinada técnica de produção, que faz parte do conceito e que, no fundo, é uma receita. Desse modo, o corta-papel é, simultaneamente, um objeto que é produzido de certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida: seria impossível imaginarmos um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que tal objeto iria servir. Podemos assim afirmar que, no caso do corta-papel, a essência – ou seja, o conjunto das técnicas e das qualidades que permitem a sua produção e definição – precede a existência; e desse modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada. Eis aqui uma visão técnica do mundo em função da qual podemos afirmar que a produção precede a existência.
Ao concebermos um Deus criador, identificamo-lo, na maioria das vezes, com um artífice superior, e, qualquer que seja a doutrina que considerarmos – quer se trate de uma doutrina como a de Descartes ou como a de Leibniz –, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos o entendimento ou, no mínimo, que o acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando. Assim, o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta-papel, no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo determinadas técnicas e em função de determinada concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Desse modo, o homem individual materializa certo conceito que existe na inteligência divina. No século XVIII, o ateísmo dos filósofos elimina a noção de Deus, porém não suprime a idéia de que a essência precede a existência. Essa é uma idéia que encontramos com freqüência: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e mesmo em Kant. O homem possui uma natureza humana; essa natureza humana, que é o conceito humano, pode ser encontrada em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal: o homem. Em Kant, resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem da Natureza, tal como o burguês, devem encaixar-se na mesma definição, já que possuem as mesmas características básicas. Assim, mais uma vez, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na Natureza.

Texto na íntegra Aqui

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